segunda-feira, 10 de julho de 2023

branco carrara

Não consegui dormir essa noite. Minha cabeça parecia ter o peso de uma família de elefantes e ficou trabalhando na resolução de um milhão de problemas e agonias da minha vida pessoal fora desse quarto, desse bairro, dessa cidade... Olhei pra ela enquanto ela dormia na mais pura paz, senti ali uma oportunidade perfeita pra ir embora sem dar tchau, só sumir, fazer ela acordar parecendo que fui um sonho. A ansiedade me dominou assim que lembrei das coisas que me encontram quando eu volto pra trás os oitenta e poucos quilômetros que nos separam. A realidade que me aguarda lá em cima nunca é doce.
Andei da cama até o banheiro do quarto, depois até a sala em passos curtos para que eu não perturbasse o sono dela. Eu quis aproveitar o momento sozinha, de quietude e paz enquanto ainda era o que eu tinha de concreto ali, em mãos. Me acomodei no sofá da sacada enquanto terminava uma dose de whisky que larguei por aqui há uma ou duas horas atrás e observava com calma todo o espaço, o apartamento extremamente branco, o chão branco carrara me lembrou que temos ambições diferentes, vidas diferentes, contas bancárias diferentes.. mas a felicidade dela me soou sem vida, principalmente depois que os pais dela foram embora pro interior, acho que nesse apartamento já não mora mais felicidades, alegrias, eu procurava felicidade então em qualquer movimento lá embaixo, ouvindo pouco do barulho, motores dos poucos carros, algumas sirenes que escutei durante a madrugada, tudo aqui é muito branco e organizado e eu gosto do caos. O lusco fusco deixava cada vez mais óbvio pra mim que a manhã chegaria a qualquer momento eu querendo ou não. Quis congelar o minuto, paralisar como nas fotos que eu olhei no mural de retratos que ela tem colado em um dos quartos que ela usa como escritório, e que inclusive tem uma foto minha que eu odeio de quando eu era mais jovem, peguei a foto e escrevi um poema atrás uma vez, ela nunca encontrou e eu acho isso engraçado. Torço para que um dia eu receba uma sinalização de que ela encontrou o breve poema de Mário Cesariny escrito atrás da foto há pelo menos três anos atrás, enfim. Penso que quando a manhã chegar tudo que sinto de bom vai embora junto com o escuro da madrugada, o charme, o perigo convidativo que é me tirar de casa pra aparecer aqui, na frente dela oferecendo buceta, drogas e uma paixão vapososa. Oferecendo pra ela uma válvula de escape, um momento de paz, uma quebra na rotina... mas é só isso que sou pra ela? É só isso que ela é pra mim? Sei lá.
Ontem bebemos demais. Fumamos demais. Rimos demais. A gente se dá bem demais. Penso, qual meu crime então? Onde está o erro? A engrenagem quebrada que não deixa tudo funcionar corretamente? Por que sempre fico sentindo o sabor amargo que tem a sensação de culpa que sempre chega sem que eu tenha feito nada de errado? Por que há culpa? Nós transamos novamente essa noite, tá bom, mas quando não? Quando a gente não se encontra, se beija, se ama, se fode? Quando é diferente disso? Quando eu não espero isso dela? Um sexo, uma discussão, um novo adeus, eu vivendo sem ela e ela me trazendo de volta. Desejei por um instante que fosse diferente hoje, que ela acordasse e se sentisse assim como eu, em paz. Queria que ela acordasse tendo um novo conceito sobre o amor. Mas que se foda, né? Ela acha que o dinheiro compra o amor e isso diz muito mais sobre ela do que sobre mim, acho.
Esfrego meu rosto em busca de alguma realidade que não chega, volto pro quarto para que ao menos o álcool e a maconha me façam dormir algumas horas até eu acordar e a luz do Sol já ter dominado o apartamento todo. Em pé observo por breves segundos enquanto ela ainda dorme, completamente nua. Despida de tudo de todo o mal que eu já vesti ela, mal respiro tamanha beleza do que meus olhos se encontram pousados. Penso que não posso mais permanecer zapeando pela vida dela como se ainda fossemos as meninas que éramos há dez, onze, doze ou mais anos atrás, e aliás essa fase hoje são só lembranças que não resistiram ao tempo. Mágoas e amores perdoados e esquecidos. A pipa sobe e ela também desce. Mas ainda assim... Ela é uma paixão tremenda, inegável o quanto ela me destoa do normal.
Ela abriu os olhos, sonolenta, totalmente desprotegida, desconectada com toda merda que pensei há minutos antes... Por um segundo parecia que eu precisava dizer algo, como se eu pudesse ditar como seria a vibe daquela manhã. Quis dizer algo bonito pra ela, mas não encontrei nada largado na minha cabeça que servisse para o momento, que fosse adequado. Nem sempre as palavras me encontram então eu mantenho um relacionamento bastante íntimo com o meu próprio silêncio porque eu nunca sei exatamente o que ela quer me falar, mas aparentemente eu sei exatamente tudo que ela quer ouvir de mim. Talvez ela só queira todas as palavras que eu não quero dizer, que eu não acho, que eu sequer procuro... Talvez eu escreva algum dia, talvez isso fique perdido eternamente dentro da minha cabeça e foda-se também.
Eu não sei quando passamos a nos resumir a isso, sexo ocasionalmente e só, mas não mudaria nada nessa história, nada. Nem mesmo os desencontros, nem os traumas. Ela simboliza inspiração pra mim, às vezes queria não ser apegada à minha verdade, ser mais flexível, dar o braço a torcer, baixar a guarda, eu queria pensar mais antes da ação, conseguir dizer não, e não basicamente me teletransportar pra vida dela ignorando tudo que nós vivemos antes disso, ignorando completamente os pontos positivos da nossa história e colocando ela somente como alguém que gosta de me induzir ao erro, à loucura, ao ponto onde eu já não consigo não ficar em paz com nada. Mas talvez a filha da puta seja eu, né? Não sei. Eu só consigo olhar de um lado da moeda, eu não sei o que ela vê sob a ótica dela. Mas é ruim pra caralho quando ela acorda sobrecarregada de expectativas que eu não supro... enquanto ela pega novamente no sono, eu penso que sinceramente espero que hoje ela não transforme a gente em competição de quem consegue ser mais filha da puta, de quem tumultua mais a cabeça de alguém, de quem cria mais guerra, hoje ela jamais teria como ganhar.
Isso que é foda... Queria não sentir necessidade de antecipar minha defesa.



Share:

Talvez você também goste desses:

0 comentários: