terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

bicuíra

A garrafa de vinho nos ouviu mesmo metade da noite falando nada com nada, como eu já tinha previsto. Sentada ao meu lado no meio do chão da sala, ela me olhava com aquele olhar dela que eu não sei resistir. Ela sabe que eu não sei resistir. O olho fecha um pouco, o sorrisinho, aquela expressão dela que me atravessa, que me pede um beijo na boca, quase implorando, que me pede pra ficar aqui, pra não sair e pra não querer ir pra nenhum outro lugar, agora. Pelo menos não agora. O olhar que parafusa meus pés no chão, que impede o rato de fugir e vez ou outra até de respirar. O olhar que faz eu esquecer que existe um mundo do outro lado dessa porta.
"E existe? Qual a importância do mundo lá fora? - me questionei em pensamento. Nenhum. A resposta é essa. Eu atraso corre até pro Papa se ela me chamar. Eu deixo de lado qualquer pessoa.
Aqui dentro, dividindo somente com ela o espaço da sala branca e ampla eu nem me lembro que os meus problemas reais vão me encontrar de volta assim que eu entrar no elevador e descer daqui do nono andar, eu tenho certeza que toda a minha insatisfação pessoal e sensação de estar regredindo na vida só por "me sujeitar" a passear novamente na vida dela, descumprindo minhas próprias promessas, o mal estar, arrependimento, que seja... o peso disso tudo pode me encontrar mais rápido que uma bala assim que eu colocar meus pés na rua. Como pode não me encontrar nunca, também. Eu sempre pago pra ver. Essa é a merda do "dá pra lidar depois". Na verdade não dá pra lidar depois, eu sei disso. Mas pra mim, mulher apaixonada, não há nada mais urgente do que beijar a boca dela. Escutar a voz. Sentir o cheiro. É o efeito que ela me causa desde a primeira vez em que eu a vi e nós éramos apenas duas meninas sem nenhuma maturidade ou muitas expectativas com a outra, só querendo beijo na boca e um canto seguro e a sós pra ficar sem roupa na presença uma da outra. Quando tudo isso não era nada demais, só atração.
A ponta dos dedos dela tocou meu pulso bem suavemente, com calma, deslizou pelo meu braço. Tateou meu ombro, me fez um carinho no pescoço. Olhando nos meus olhos. Comentou sobre as escritas que tenho tatuada e brincou com possíveis significados. Ela me sente, eu a sinto de volta. Me perguntou, num tom de deboche se eu tinha casado com o beck, tamanho a demora pra passar. Segui num cafuné lento enquanto ela encostava em mim como se fosse algo normal, banal e rotineiro, ficamos assim por alguns minutos. Em silêncio. Passei o baseado pra ela e isso foi quase como criar uma conexão, dois tragos depois ela me devolveu, passou a mão pelo meu braço e então pulou pra perna. Alisou minha coxa por alguns instantes olhando fixamente o próprio carinho. Seguindo as linhas das tatuagens lentamente com a ponta dos dedos. Balançou a cabeça sozinha, como em negativa de algo.
"Que foi?" - perguntei, cortando o silêncio.
Taz, né? Nunca em silêncio.
"Eu gosto quando você tá aqui. Eu penso em você quando você não está." - Respondeu baixinho.
A expressão dela me pareceu um pouco triste, e meu coração veio a boca num movimento abrupto, sabe aquela mulher que mexe com a sua cabeça? Ela é dessas, a maior qualidade dela é ser incrível. O maior defeito dela é o mesmo. Eu não quis estragar o momento e hoje eu não quero citar defeito nenhum, foda-se. Em todo texto eu falo um defeito dela, do meu ponto de vista, e largo um foda-se. Há anos ela quebra meu coração de tempos em tempos, há anos eu sou ardilosa e filha da puta com ela usando vingança como desculpa. Eu não sou mais essa mulher, revidar qualquer coisa, causar qualquer dano emocional, impacto, foda-se... já não é mais prêmio pra mim, mesmo. Eu quero paz.
Senti falta de estar aqui, por ela. Com ela. Ela é mó gata, patriçoca bala, sempre foi, o tempo só melhorou. Ficou com mais cara de safada. Do tipo que eu nem sei porque se envolve comigo, mas sei que é altamente inflamável, a temperatura entre nós sobe muito fácil, só enquanto a gente se olha sobe muito rápido. O cheiro das coxas dela é o combustível pro meu fogo. Quando a língua roxa, por causa do vinho, toca minha língua, eu perco a noção do perigo.
Depois da terceira taça de vinho e do segundo baseado o jeito que ela fala vai ficando engraçado, e eu adoro. Ela já é slow normalmente, a fala lenta, imagina ficando bêbada? Eu fico agitada bêbada. O olho dela diminui e eu me sinto atraída pela cara de fumadora de maconha que ela tem. A gente tem uma vibe tão boa quando a gente quer. Duas chapada sintonizadas rindo de tudo. A vida fica mais dahora na companhia dela. E eu queria, de coração, que a gente optasse pela paz sempre. Mas as coisas são complicadas e meio mal esclarecidas. Mas nenhuma decisão é pra sempre né, nem mesmo as que eu jurei que seriam.
Enfim.


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