quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

temos nosso próprio tempo

Correu em minha direção assim que me viu descendo do carro de aplicativo. Já me aguardava na rotatória na metade da rua, sempre nos encontramos no mesmo lugar. sempre na mesma esquina. Fiz o trajeto da minha casa para a casa dela com a mais pura paz e principalmente desarmada, em quase todo o sentido da palavra.
Minha cabeça até procurou um defeito ou incerteza na situação, algo que me fizesse pesar o clima. Mas eu quis estar com ela. Mais um encontro no meio da madrugada, no impulso, na vontade, na loucura mesmo eu estando mais careta do que nunca. Sem muita certeza ou segurança do que eu ou ela queria exatamente. Só a certeza da presença dela já me foi suficiente. A única certeza é só que agora ambas estamos adultas e pelo menos minimamente maduras, numa busca intensa, incessante e bastante interessante por autoconhecimento, por ser alguém melhor ou qualquer equivalente, enfim. Eu quero esquecer a menina que ela era e me permitir conhecer a mulher que ela se tornou, sei lá por qual motivo, mas eu quero. E lá eu estava, com um propósito todo meu. Cura? Não sei. A cura é minha, de mim pra mim e foda-se. Ela não vai me ajudar nisso, inclusive talvez até atrapalhe. E eu nem quero que ajude, mas eu quero normalizar a situação, às vezes penso que quero transar com ela até isso me soar o mais chato possível, beijar a boca dela até banalizar, quero olhar pra cara dela até não sentir mais frio na barriga, sentir o abraço dela até a ausência dela parar de rasgar meu coração no meio, até meu peito parar de queimar, quero conseguir encontrar com ela sem ressaquiar depois, sem sentir o dia seguinte como uma rebordosa do caralho. Até escoar de mim toda memória ruim. Como conseguir o que eu quero se eu nem sei exatamente o que eu busco? Eu busco por mim. Só quero banalizar a situação.
Mas lá estava ela... Aquele ar calmo que toda pessoa nascida aqui tem, foi calmo e paz olhar pra cara dela. Não que eu esteja falando que daqui em diante tudo ok e não vamos mais surtar uma com a outra porque o processo para chegar lá é árduo, doloroso e perigoso. E além disso, é longo, um longo caminho até zerar tudo. Mas a tendência tem que ser melhorar. Não que eu esteja falando que quero continuar voltando em toda oportunidade possível. Mas talvez eu volte. Talvez ela vá também. Talvez depois de hoje a gente nunca mais se veja. Talvez amanhã. Talvez daqui um ou dois anos. Nós sempre tivemos nosso próprio tempo e entendimento. E tudo bem.
E lá ela estava. A mesma rotatória, a mesma esquina, o mesmo velho bairro burguês e tudo bem pra mim, eu me senti confortável... Lá estava a velha e íntima burguesa também. Da esquina até a entrada do prédio é o tempo certinho pra eu fumar metade do baseado. Único motivo pelo qual eu sempre peço para que ela me encontre na esquina.
Os olhos dela brilhavam e os meus com certeza eram mais iluminados que um céu em plena meia noite de um ano novo qualquer, meu peito explodiu afeto rapidamente no exato momento em que as digitais dela tocaram minha pele, no braço. Meu coração acelerou e eu entendi que eu não consigo mesmo encontrá-la mais sem esperar sei lá, um beijo na boca. Sorriu, me abraçou e murmurou palavras bastante saudosistas enquanto beijava meu ombro, meu pescoço, minha bochecha... Ela sempre faz esse trajeto, é quase como pedir minha permissão pra chegar até minha boca. Beija meu rosto antes. Eu gosto, mas eu acho engraçado, né? Me deu um selinho rápido. Meio dado, meio roubado. Meio incerta.
Acendi meu beck enquanto caminhávamos pela rua até a portaria do condomínio em que ela mora, rasgando a madrugada sem medo de nada, curiosamente de mãos dadas até o prédio... apaguei pela metade antes de entrarmos no hall, no apartamento dela as taças e o velho vinho vagabundo aguardavam para nos ouvir o resto da noite falando nada com nada. Eu nem sei pra que eu vim. Talvez pra isso. Talvez pra me expor, talvez pra desarmar os gatilhos, talvez pra debochar deles. Afrontar mesmo. Talvez pra ressignificar tudo isso. Talvez pra não deixar ela sumir da minha vida me odiando.
A noite era quente mesmo, muito, dessas que a gente não aguenta ficar de roupa, eu sentada no chão da sala dela, em sua companhia, dentro da casa dela, totalmente confortável - é importante ressaltar que eu nunca fico confortável em lugar nenhum - parecia que era só minha brisa, coisa de louco, coisa da minha cabeça. Foi leve e estranhamente bom depois de muito tempo. Depois muitos encontros. Depois de muitas brisas. Muitas tretas. A paz foi praticamente como não morrer na praia, entende? Foi natural. Eu remei, remei e hoje, só por hoje, ancorei em local seguro, no meu cais. Puro porto.
Ela é boa em criar intimidade comigo, em me derrubar de cima do muro, em derrubar o muro também quando quer, boa de me ganhar, boa em qualquer coisa que ela se propõe em me fazer sentir.
Eu tinha esquecido disso.


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