Seria o meu sangue frio o contrapeso da minha cabeça quente? Não sei. Talvez sangue frio e cabeça quente sejam uma dupla, um casal. Tipo aquelas ideia de mal necessário, sei lá. Um é atrelado ao outro. Eu me olho no espelho do banheiro e me vejo mesmo mais apática e vazia, mais fria e nem é devido ao clima, vejo alguém que corre pra caralho mas no fim de toda noite joga o suor na pia, ralo abaixo. Eu sei. Tento não ser contaminada pelo que eu vivo, vejo e sinto. Mesmo quando eu não sinto nada. E há meses já não sinto nada.
Às vezes queria conseguir chorar, isso é algo que nem consigo mais. Eu acho que mesmo observando um quadro tão triste eu já não emociono, normal... Nem sinto. Quer dizer, nem sinto mais. Saudades de quem eu era quando eu chorava ouvindo sertanejo. Mas hoje eu tô normalizando o horror banal enquanto mesmo sem ter afinidade ou simpatia nenhuma eu sempre sorrio meu melhor e mais falso sorriso que eu reservo pra playboy me dando nota em cima de nota querendo droga ou patrícia safada que se abre toda, igual flor, em busca de droga ou afinzona de sentar, e eu sempre vou dizer não porque cliente não é amigo, eu não convivo, não me relaciono. Nada pessoal. Tudo tem seu preço, eu também tenho o meu. Custa caro meu risco, tuas horinhas de barato custam almas, tua droga favorita antes de ter chegado na tua festinha, pode ter tirado vida. Mas eu mesma não posso julgar nada. Quem sou eu? É o sorriso deles que faz tomar forma meu primeiro objetivo, dos três. E o meu segundo objetivo é atingir o meu primeiro objetivo viva. Mas viva com vida, entende? Porque eu ainda não tô pronta pra virar lembrança. Viva ao ponto de conseguir socializar, não virar zumbi do meu próprio produto, não me reduzir ao que me resume. Viva ao ponto de não em sentir errada em qualquer lugar, que seja. Pé na porta e soco na cara, e minha cara é sempre fechada porque eu também sou.
Um teco novamente e eu planejando livramentos movendo quinzenalmente a carga, a gente atravessa a cidade a milhão com o carro carregando e cara mais de sonsa que nós conseguirmos fazer. Mais um dia que é tudo nosso e nada deles. E hoje é só mais um dia que meu plano de sobrevivência, subsistência têm dado certo. A nova casa é um sobrado grande, gelado, afastado, espaçoso e eu saio daqui sempre um pouquinho mais rica e com um caráter mais pobre, eu sei.
A maldade do mundo é colocada nua e crua à mesa pra mim a cada vez que eu ponho meus pés aqui. Abro, fecho, aperto os olhos e a cena é sempre a mesma, separo produtos, conto produtos. Lavo o rosto, tomo um energético, dou um teco, enrolo a nota, guardo a embalagem e só nesse tempo eu me distraí por três minutos... Eu me sinto perdendo esse tempo.
Porra de vida.
Como que empilha dinheiro sujo? O dinheiro vai tão fácil quanto vem.
O meu karma é esse, então estaria eu pagando ou acumulando? Já notei que me afastei muito de quem eu era no início de tudo, eu só não quero me permitir ser engolida, devorada, dominada pela ganância que eu tenho e que eu possa vir a ter, o cheiro de papel moeda me ajuda a respirar, mas o mundo de ouro não me leva embora, nunca levou. O que me coloca em risco nunca pode ser chamado de fácil.
Meus olhares focados na viela da entrada, daqui eu não saio nunca por uma hora completa, e desde que cheguei já perdi nove horas de vida numa tentativa vazia de sobreviver. Você entende a necessidade, profundidade disso? E eu comecei nem foi por necessidade, foi só porque eu queria me sentir melhor comigo. E sobre as horas, eu ainda tenho mais algumas pela frente, mais algumas horas brincando com a peça de prata na febre do rato. Da rata, no caso. Travando a destravando, só pra quebrar o silêncio.
Sempre fui ótima na mira, mas nunca usei. E graças a quem me protege, que nunca dorme... e pra falar a verdade nem eu, é importante me lembrar que há dias não durmo e sempre me sinto aqui... Quando eu tô no mundo dos boy, eu também me sinto aqui. Lá fora, no mundo onde eu sou inserida eu ainda me vejo sentada nesse banco de madeira, olhando a ladeira pelo espelho mesmo quando eu estou em casa. Mascarando uma vida errada com a camiseta preta de escrita vermelha. Algum dia vai ser meu dia de azar, mas até hoje... caralho, eu tive tantos dias de sorte, né? Eu nem posso reclamar. Tudo é equilíbrio né? Foi uma escolha pessoal, né? Como que convive com a sensação constante de perigo, aprendendo a analisar cada olhar diferente sempre tentando antecipar a ação de qualquer suposto inimigo. Inimigo? Desde quando a vida me gerou isso? Concorrentes são lixo e eu ando atenta sempre pra não entrar em desgoverno.
Perigo.
Minha vida é isso.
Mais um dia ou menos um dia?
Minha vida é isso.
Acho que a sensação constante da adrenalina infelizmente virou meu vício.
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