terça-feira, 24 de agosto de 2021

fala comigo

Ela levou uns cinco minutos pra subir, e isso porque meu prédio é o primeiro da fila. No terceiro minuto começou a ficar incômodo e inquietante pra mim, a porta que eu mantive aberta enquanto aguardava que ela subisse gelava minha sala. Ela passou de menina à mulher problemática tão rápido que eu quase não pude acompanhar, ela não me acompanhou também. Eu quase coloquei música em plena madrugada pra rasgar o silêncio e eu conseguir não pensar em mais nada, só por um segundo.
Ela encurralou o rato. Me impressionou. E não foi nem entre as pernas, o que me impressionou mais ainda. Ela me assalta com qualquer tema tão bem que eu não me disperso mais, eu não fujo. E olha que eu fujo de mulher bonita. Nem contato visual.
E pra ser sincera... Eu não queria interagir com ela num espaço de tempo tão curto assim, entre um encontro e outro. Mas ela encurralou o rato. Eu não conseguiria fugir do meu próprio quarto.
Corri e descolei a placa da parede. Não que eu tenha a intenção de deixar ela chegar tão longe quanto dentro do meu quarto, mas...
Pensei que ela deu sorte de eu estar em casa, deu sorte de eu não tá com qualquer outra aqui, vendo um meteflix. Ela não me tiraria de dentro da buceta de nenhuma outra mulher, hoje. Não mais. Pelo menos esse poder eu recuperei e o tenho em minhas mãos. E nem vindo aqui na minha porta ela conseguiria isso.
Cinco minutos pra subir. Demora do caralho. Lá fora um frio de quatro graus. Maluca e filha da puta.
Cinco minutos... E lá estava... Degrau por degrau. Os olhos grandes e castanhos da cor da tempestade que chega cruzaram com os meus e eu não senti nada relevante e além do mais o tempo já está tão fechado que logo penso que ela não teria muito trabalho. Abaixa a máscara e me dá um sorriso, o mesmo cabelo no tom que eu amo, isso foi só observação mesmo, porque ela é do tipo que não muda nunca, o frio deixou a ponta do nariz dela vermelha, eu achei engraçadinho. Lembrei do tempo que ela passou no Canadá e de como o inverno lá deixava ela parecendo uma rena. Eu sempre gostei muito de brincar e falava que era por causa das drogas. Por um segundo eu até gostei de vê-la, só nós duas, ali.
Mas esse segundo passou rápido, no segundo seguinte meus olhos estranharam vê-la, foi como se eu fosse capaz de repelir ela. Não exatamente repelir, até porque ela já estava aqui e eu não mandaria ela embora. Mas quando eu quero, eu sou mesmo, já tive muitas ocasiões que eu fui repelente pra caralho com ela. Eu me tornei menos babaca com o passar do tempo.
- Sua terra faz frio. - Eu dei risada, ela sabe muito bem como ganhar um sorriso meu, dos sinceros. Sorriso é intimidade das brabas pra mim, mas ela ganha sorriso sem muita intimidade. Eu nem nasci aqui pra ela chamar de minha terra. Mas lembrei de como eu achava engraçado o jeito que a avó dela se referia ao nome da cidade onde eu moro, toda vez, por anos a mesma piada bobinha quando falava comigo ao telefone. Até quando eu me mudei, quando eu voltei. A mesma piada. O sotaque da avó, eu passei tardes inteiras escutando aquele sotaque característico de quem mora na região dela. Eu adorava escutar as histórias. Sei lá. Senti saudades da avó dela. Lembrei do quanto eu fui a favorita da família dela toda, do pai burguês, bêbado e às vezes chato, da vó, daquela prima com quem eu fumava um beck sempre, eu era a favorita até da vizinha velha maluca excêntrica que morava no andar de baixo, continuei sendo a mais queridinha dela mesmo quando ela quase pegou a gente se pegando no elevador. Mal eles sabiam o mal que a gente se fez enquanto casal, dos traumas criados aos montes... aquele rolê todo que nem tenho mais o que falar. A galera gostava muito de julgar, analisar a nós e a nossa relação baseados somente em rede social. Eu nunca fui flor que se cheira, ainda bem que eu sou mó paz hoje. E acho que ninguém conhece ninguém de forma extremamente intensa e verdadeira. E pra ser sincera, eu acho que filtros do Instagram deixavam a gente bem mais feliz do que a gente foi, de fato.
- Hoje é a noite mais fria do ano, eu acho. - respondi, ainda rindo. Pensei em perguntar logo porque ela veio antes mesmo dela se acomodar no meu sofá, mas penso também que soaria rude e na agonia instantânea que me dá por eu não querer saber, mas hoje achar suportável a presença dela invadindo meu espaço. - Tá tudo bem? Eu pedi um vinho pra gente. - todo aquele rolê do vinho ruim que ela gosta e deixar ela tranquila pra falar. Todo mundo fala pra caralho bêbado né?
Ela ri. O clima fica leve quando ela ri, eu gosto quando as pessoas se sentem bem.
- Você é foda... - balança a cabeça contrariada. Acho que ela não esperava que eu me tornasse tão receptiva e como eu sou do avesso ainda não entendi se foi um elogio ou uma crítica.
Me deu um novo isqueiro.
Tomou a garrafa de vinho toda.
Contou da multa que levou por eu ter fumado na escada do prédio.
Riu da placa.
Chamou o Uber... E foi embora.
Não tinha nada de relevante pra falar comigo.
Até eu entender que o mais relevante que a tenha feito vir foi eu mesma.
Maluca do caralho.


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