Sessenta e oito passos dados até a porta do apartamento 424. O estranho começa aí. Tenho algum tipo de fobia quando viro a chave, não que eu tenha algo concreto ou até mesmo uma explicação plausível pra isso. Eu só sinto. No corredor, aberto... eu geralmente apago o cigarro antes de entrar, costume antigo pois há tempos eu estou sozinha, e ainda assim mantenho alguns hábitos pra não incomodar. Incomodar a quem? Tranco a porta... e não há ninguém em casa. Acho que não há ninguém mesmo quando eu estou ali.
O pó acumula nos móveis, parece que há tempos eu não estou ali. Tirando minha alergia agressiva me incomodando eu até poderia achar que nunca estive mesmo. Não há nenhum sinal de vida aqui.
Todos os dias pontualmente às 18h eu observo a avenida, pela sacada. Eu talvez espere algo que não vá acontecer. Lá embaixo só vejo mesmo o movimento, trânsito e pessoas sem rosto andando sem parar de um lado pro outro me fazem acreditar que por ali a vida pulsa. Eu gosto de fotografar as pessoas lá embaixo, a altura, a sujeira e a confusão da avenida, ninguém nunca notou. Apago todas as fotos depois, mas cada clique captura tudo que eu não vejo direito, tudo que eu não participo, não entendo, as pessoas se olham, se falam, sorriem, vivem. Eu nada ouço e o silêncio daqui de cima é enlouquecedor.
Acredito que sofro perseguição dentro do apartamento: memórias, elas estão por toda parte e não me deixam em paz. Sem falar sobre minha claustrofobia, o oxigênio parece raro dentro daqueles setenta e cinco metros quadrados. Eu estou presa nesse mundo sem você, sufocada por mentes pequenas, presa dentro de uma caixinha colorida. Batendo de forma incessante nas paredes. Como se eu fosse um rato preso na gaiola, entende? Correndo naquela roda o dia todo e todos os dias. Correndo pra caralho sem sair do lugar.
Mais sessenta e oito passos dados até o elevador. Dá setenta se eu incluir os dois passos que eu dou dentro do elevador.
Cada bar dessa avenida é frio, conheço todos, tive tempo suficiente sozinha pra visitar cada porta suja e inescrupulosa dessa avenida. Um monte de boteco escroto, barulhento, com bebida barata, mesas cheias de gente igualmente fodida ou até mais fodidas que eu com suas companhias mais baratas e fodidas ainda. Meu copo, todavia, continua vazio, imóvel e isolado, exatamente como eu.
Quarta feira, 00h46, o tempo é mais lento que meu raciocínio. E nessa mesma onda de câmera lenta, desfocado, a embriaguez me traz lembranças de tempos passados, não tão antigos assim, mas passados. Acendo um cigarro e observo enquanto as garotas da noite dançam. Minha memória volta direto para aquele vinte e oito de novembro. Tudo é igual, o clima, o vento gelado de encontro ao meu rosto. A cena se repete inúmeras vezes, deve ser algo ligado ao carma – uma vez me disseram isso e ficou na minha mente, acho – Talvez seja fato que eu sempre inicie uma busca babaca por você, orgasmos, felicidade e liberdade.
O letreiro em azul e vermelho neon pisca lá fora, faltam algumas letras que estão apagadas. Eu permaneço em silêncio enquanto você foge de dentro da minha mente, toda essa frieza em mim é brutal e me assusta pra caralho se você quer saber (não, você não quer). E aí é sempre a parte que eu me sinto sufocada. Minha cabeça entope de pensamentos e acho que isso é a causa do ar não entrar pelas narinas e me sufocar.
Não, to delirando.
Acho que o que me sufoca é você. São as verdades prostitutas que eu guardei só pra mim, escondidas em algum canto largado. O que me sufoca é saber que você não vai voltar, que eu posso gritar, bater nas paredes, pular da janela, queimar as fotos, os fatos, incendiar o prédio, o quarteirão e todos os bares, foder todas as vagabundas dessa cidade, que você não vai voltar. Não importa. As memórias voltam, de novo. Dessa vez eu te vejo num zoom de certo desfocado... Você, correndo na calçada fria, direção oposta à minha. Eu nunca me esqueci daquela noite.
Continuo na mesa. O que me resta de você? Só as garrafas vazias e as cinzas do teu cigarro. Queria teus sorrisos, mesmo que falsos. Você não me deu a chance de uma última dança, última dose, última vez. Vozes tão vazias quanto eu me pedem pra voltar pra casa, dizem que eu deveria saber quando parar e me olham com dó.
Dizem que a vida é uma dádiva – e eu acho que isso é maior mentira de todos os tempos – Filosofia banana, filosofia de vida é que posso morrer a qualquer segundo, a tragédia, digo eu, é não ter morrido ainda. Eu me abandonei, e nem sei por quê. Penso no abandono como desistência. E penso na desistência como o ato mais repugnante de um ser humano, honestamente. Minhas desgraças cotidianas, babacas e dramáticas nunca me fizeram sentido, alias, porque fariam? Mas é que ninguém sabe o que é passar a noite em claro como se fosse a coisa mais normal que existe, e tomar ducha fria às 4h20 pra ver se eu acordo deste pesadelo onde vejo sorrisos se acumulando, bucetas que eu não quero e casais de mãos dadas.
Não somos nós. Se existe uma lição que eu tenho que aprender de uma vez por todas é não viver da merda do passado.
Eu não sei dizer se é desilusão, mas que se foda: olha só moça, olha só o que eu te escrevi.
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